quinta-feira, 12 de agosto de 2010

 E, nesse segundo, não sou mais dona do meu mundo. Tudo virado, tudo ruído, tudo acabado. Eu que desconheço essa que sou agora, tateando amedrontada, tento construir o próximo segundo, para que ele seja diferente desse que está passando e já passou, e de quem também não sou mais dona..."12 de julho
Essa crônica é a de hoje. O carroceiro é um personagem real do meu bairro Brooklin (São Paulo). É um personagem que me cutuca toda vez que encontro. Que me cobra atitudes. Refletir já é um começo...

O carroceiro

O carroceiro






Faz anos que nos cruzamos pela cidade de São Paulo.

Essa cidade tão grande e tão pequena.

Eu já sou íntima dele; ele nem sabe que eu existo.

Ou será que ele guardou na memória a minha imagem, ou o som da minha voz, das minhas palavras?

Falamos uma única vez: eu o encontrei embaixo de uma ponte que cruza uma movimentada avenida.

Brequei o carro, coloquei em ponto morto, nem desliguei. Desci do carro e abrindo a porta traseira fui pegando a camisa pendurada de meu marido e ao mesmo tempo chamando sua atenção para que parasse, não atravessasse a avenida.

Meu pai sempre achou que essa era uma profissão humilhante, porque o homem puxa a carroça no lugar do cavalo.

Qualquer coisa bem perto do desumano.

Uma profissão que rebaixa a condição de ser humano, que deforma o corpo, e que o torna animalesco aos nossos olhos, se nos descuidarmos...

Lembro-me dele abaixando a cabeça toda vez que encontrávamos um carroceiro pelos nossos caminhos.

Eu não penso dessa maneira, mas me constranjo sempre que cruzo meu olhar com o de um carroceiro.

Tenho vergonha por não fazer nada pela desigualdade.

A camisa era para ser dada mesmo, a quem se interessasse. Não servia mais ao meu marido.

“O senhor quer essa camisa?” “O senhor precisa de uma camisa?”

Quando o vi tão perto, consegui finalmente enxergar suas feições.

Enxerguei um rosto velho, muito marcado por sulcos profundos, enxerguei a falta de todos os dentes, numa boca rasgada, entristecida, enxerguei seus olhos profundamente negros, vazios, assustados. Seu cabelo que não tinha cor.

Uma sujeira desconhecida das sujeiras costumeiras do meu cotidiano.

Quando as mãos dele seguraram a camisa tão branca que meu marido usava em ocasiões especiais, segurei o impulso de puxá-la de volta, como se fosse para proteger sua pureza, sua ingenuidade, parecia que ela tinha sido até aquele momento imaculada, e que o simples toque daqueles dedos tão calejados fosse mudar essa condição..

Como se quando ele a tocasse, ela imediatamente fosse conhecer o outro lado da vida.

A miséria, a sujeira, a fome, a dor.

O mais escuro da escuridão.

Ainda bem que não fiz isso.

Ele grunhiu qualquer coisa incompreensível, numa linguagem que não consegui decifrar, mas com certeza um agradecimento, e pendurou a camisa em sua carroça, assim como ela estivera antes no meu carro. E saiu correndo com suas caixas de papelão e seus cachorros, para não perder o sinal que estava aberto. Como se o tempo fosse o bem mais precioso que ele possuía.

E eu, voltei ao carro, ao meu percurso, mas não voltei à minha vida.

Fiquei como se estivesse flutuando, por cima da nenhuma história do carroceiro.

A história que eu não conhecia, mas imaginava.

A história que era tão sem graça, tão pobre de capítulos.

Para onde iria a camisa tão mal acostumada de meu marido?

A camisa que freqüentara tantos lugares inimagináveis para o carroceiro.

Quando ele a iria vestir? Depois de que banho? Onde ele se banhava? Como? Teria ele um teto? Um prato de sopa nessas noites frias de inverno? Teria ele uma calça, que não aquela marrom ruça das tantas vezes que nos cruzamos?

Sabia uma coisa sobre ele, pelas tantas vezes que vi sua carroça: ele era organizado.

Suas caixas desmontadas de papelão estavam dispostas em ordem decrescente de tamanho, amarradas com barbante para que não deslizassem e nem amassassem. O que não era papelão estava separado em blocos também cuidadosamente agrupados.

Sim, aquele carroceiro sabia bem o valor de suas sucatas. Para ele, elas eram um tesouro a ser protegido.

Pensei no que ele faria, se tivesse bens. Se ele tivesse coisas importantes para cuidar...

Teria esse meu carroceiro uma família? Uma mulher? Algum sonho?

Que passava em sua cabeça, quando correndo para atravessar a avenida, com sua carroça pesada, das coisas recolhidas por ele, das coisas que não tinham valor para outros, mas que para ele eram preciosas, alguém buzinasse atrás?

Algum humano, desses que estão na nossa sala de estar, ou no nosso restaurante preferido, apressadinho, exigisse mais velocidade das pernas fracas e exaustas do carroceiro?

Será que ele, quando parado no farol, ou quando explorava os lixos dos outros, ambicionava alguma coisa? Um modelo de carro, talvez. Ou admirava alguma casa? Apreciava a arquitetura?

Será que ele percebia diferenças?

Será que via as cores?

Será que ele ria das pequinesas dos homens que as julgavam grandes?

Onde ele gostaria de ir, de estar?

Conheceria músicas? Já teria escutado ópera? Saberia diferenciar os idiomas? Saberia o que existe do outro lado da terra? Teria idéia do estrago que viemos fazendo na natureza? Das próximas eleições, ele tinha consciência?

Por alguns instantes senti inveja do que achava que ele não conhecia. Achei que a marginalidade podia ser interessante...

Aí, despertei para a realidade, enxerguei o carroceiro virando a esquina, e pensei que talvez mesmo ele precisasse sempre estar andando por aí, correndo.

Buscando sempre. Atrás do que não tinha, do que não sabia...

Ou talvez, corresse para escapar da miséria. Da sua condição.