terça-feira, 2 de outubro de 2012


SOBRE CLARICE


Curso sobre Clarice. Sala lotada.
Professor é uma referência na cidade. Um intelectual, artista, compositor.
A sala está cheia de mulheres. Acho que umas 18. Todas arrumadas, pintadas, bem vestidas.
O lugar é um centro de cultura que tem como objetivo difundir o conhecimento, proporcionar lazer, para pessoas com dinheiro, daí não estranhar as marcas das bolsas, os carros em que ela vieram, os seus óculos. Suas posturas. Todas bem sentadas nas poltronas verdes da sala agradavelmente resfriada pelo ar condicionado.
Homens, fora o professor são 3. Discretamente misturados entre as mulheres. Como sempre essa média entre mulheres e homens, 6 para cada...
Mas talvez o número de mulheres seja grande, não pelas estatísticas conhecidas. Mas porque se trata de um curso sobre uma mulher.
Não sei. Sobre uma mulher corajosa, sensível, amarga, introspectiva. Talvez o número de homens seja pequeno por se tratar dessa mulher em especial: Clarice.
Não são muitos os homens que não se sentem ameaçados... Mas lá estão esses poucos representantes do sexo forte. Camuflados, escondidos e quietos entre mulheres inquietas. Elas querem ser notadas, eles querem parecer invisíveis. Elas levantam e se servem de vinho, café, biscoitos. Eles fingem não estar com sede e nem fome. Querem o maior anonimato possível. O porquê não sei dizer.

O professor já me conquistou em  outros cursos. É de uma sensibilidade e aparente delicadeza que impressionam. É sensível, suave, claro, tranquilo, escolhe palavras e gestos que não nos deixam distrair.

Começa a fazer paralelos entre Clarice, sua época, seus contemporâneos. Seus críticos. A dificuldade de toda a crítica, de hoje e de sempre, de enquadrar a grande literatura de Clarice na literatura chamada grande, dos grandes literatos.
O que me deixa feliz, pelas minhas ambições, é quando quase concluímos que uma grande literatura pode ser fruto de um cotidiano simples, focado através de lentes precisas, afiadas, transparentes. Um pouco a vida como ela é... 
Verdades. Realidades. Ironia. Paixão. Atenção.
Um olhar sobre as coisas, do jeito que as coisas são.
Quase como uma criança genial, olhando.
Com pureza. Mas também com dureza.
Uma verdade crua e indigesta para tanta gente.

Clarice, mulher corajosa e pouco ligada ao material.  Que não se deslumbrou com salões e cristais. Com viagens e brilhos. Gostava muito mais do ser humano e dos momentos que parecem banais, mas são tesouros, de tantos significados.

Clarice que ama os animais e os respeita. Que imagina o que eles sentem, como se angustiam e quanto devemos respeitá-los.  Clarice que faz questão de nos mostrar como a vida é feroz e brusca e negra.
Clarice que observa tudo com seu caleidoscópio multi-multi-facetado.

Clarice que se amedronta com baratas e lhes confere tanta importância. Clarice que descontrói o que estava construído em nós.

Perguntas são respondidas com competência e brilhantismo. Nosso professor é um apaixonado pelas letras, palavras e Clarice.

Para finalizar a primeira aula, a leitura de um texto conhecido, mas que se renova a cada leitura, como toda e melhor arte. Pausadamente, claramente, as escolhidas palavras de Clarice, são ditas pela voz agradável do professor e ficam ecoando nos nossos corações, em nossas almas. Sim, os textos de Clarice mexem com nosso sangue, não em nossas razões. Nos fazem ferver, nos fazem arrepiar, nos fazem tremer...

Estou sentada bem próxima a ele. Consigo enxergar facilmente a lágrima que desce de seus olhos e pinga no papel. Me emociono também.

Lá em cima, lá embaixo, onde estiver, Clarice está em estado de graça. Continua nos fazendo enxergar.