quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

AMANTES Desencontram-se os amantes. Nos ponteiros dos relógios, nas esquinas, nos desaforos do acaso, Incertezas e insegurança. Dor e dádiva. Choro e cor. Medo e mentiras. Tantas frustraçōes, tantos segredos. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Encontram-se os amantes. Marcam hora, chegam apressados, esperam ansiosos. Beijos, juras de amor, entrega e urgência. Saudade e sorrisos. Alegria e prazer. Cumplicidade e carinhos. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Desafinam os amantes. Cada um com sua música, cada um com sua solidão, cada um no seu caminho. Momentos roubados, sempre disfarçados, sem nome e sem sobrenome. Amam demais , sofrem demais, mentem demais. Tanto sentimento proibido, tanta fantasia, tanta vontade, tanta entrega Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Perdem-se os amantes, procurando se encontrar. Amedrontados em lugares desconhecidos e suspeitos. Em lugares pequenos e sujos. Onde tentam em vão viver e preservar a pureza e a beleza do amor. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Vivem em sobressaltos os amantes. Inventam compromissos, faltam ao inadiável. Confundem os outros e a si mesmos. Não sabem mais onde estão a verdade e a dignidade. Acreditam os amantes. No perdão, nas justificativas, na entrega. Acham-se injustiçados, acham-se privilegiados por um sentimento único. Enganam-se os amantes. São iguais a milhares, vivem como milhōes, pensam ser diferentes. Sobrevivem os amantes. Usam o oxigênio a todo instante, alternam os batimentos entre o mínimo e o incontável, oscilam a pressão, saturam o sangue... Têm as horas contadas os amantes. Agonizam, sofrem, se arrastam. Renascem a cada promessa os que amam

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

REALIDADE De repente, tudo vira nada, nada mais tem importância. Eram tantas as preocupaçōes, tantas as afliçōes. Mas, de repente, nada mais importa. Só escuto a notícia da boca de minha filha. Escuto a voz tão conhecida do outro lado da linha, e reconheço tristeza, agonia, revolta. Parece que levo um soco no estômago. Tenho uma tontura, me seguro na borda da mesa onde está o telefone. Acho que vou vomitar. Ela continua me contando, e as cenas se desenham na minha cabeça. É muito forte, é muita dor. Lá fora o dia está azul, depois de uma noite de chuva. Os carros aceleram, brecam e buzinam nos faróis. As pessoas trabalham, os estudantes estudam, as crianças brincam nas praças, os velhinhos se esquentam nos bancos. Os varredores de rua trabalham incansavelmente tentando varrer a sujeira da cidade. A cidade está começando mais um dia de vida, de rotina, de pressão. É a maior cidade do país, a mais rica, a que dá mais oportunidades. O maior salário mínimo, o maior número de creches, de escolas públicas, de hospitais. Mas ainda assim é totalmente precária, é cheia de favelas, de pobreza, de crianças despidas e desnutridas, de pé no chão, nas esquinas. É cheia de fome, de droga, de medo. Parece que quanto mais se faz, mais falta nela. Nada é bastante. Nessa cidade tudo é pouco. Só a violência é que sobra. Na televisão, nos rádios e nos jornais os últimos dias de uma campanha política para prefeito. Bobagens, non sense, acusaçōes e mentiras. De programas, de melhorias reais, de humildade e arregaçar de mangas, nada. Só prepotência, enganação e números incompreensíveis. Um bem elaborado marketing para confirmar mais uma vez que o eleitor é um palhaço. Na Europa a economia vai derrubando países como se derruba um castelo de cartas. Nos Estados Unidos, também, dois candidatos fazem seus showzinhos finais, com direito a balōes, fogos, papéis laminados e lábia porque querem ser eleitos presidente... A gente se distrai com o futebol, a seleção parece que descobriu o seu jogo, ganhando do Japão... E os donos da bola, o país do futebol fica feliz com isso. Ainda sofremos pela morte da apresentadora querida da tv e consumimos revistas de fofoca e mais revistas com tantas imagens repetidas e desbotadas, de tempos de fotos e tv em preto e branco. O sol. A lua. A terra. Eles continuam alheios a tudo e continuam a repetir monotonamente seus movimentos. E eu? Eu não sei mais nada disso. Eu não me importo mais com nada. Só penso no menino de 9 anos do abrigo. O menino de 9 anos abandonado pelos pais, pela vida, pela decência, pelos direitos. O menino que vai se tornar homem, na marra, na invasão, no desrespeito. Minha filha está acompanhando sua historia há 6 meses. Ele tinha começado a se soltar. A falar. A confiar. A desenhar. A representar. Mas e agora? A voz dele, ela disse, é um fio. O pensamento dele, ela disse, está tentando enganar aos dois. Mas ela descobre atrás da fuga, o fato. Descobre no desenho a dor e a vergonha. Um menino de 12 anos que dorme no beliche ao lado, um menino de 12 anos também maltratado pela vida, pelo padastro, pela violência, quer repetir o que viveu, quer descontar o que sofreu, quer repartir sua dor e então, machuca também. Banaliza, para superar. Enfraquece para se fortalecer. O abuso repetido será a salvação. A absolvição do pecado do outro, praticando o mesmo pecado. O choro sufocado no travesseiro, a dor entalada na garganta, a masculinidade afetada para sempre, a vergonha estampada na cara. E o menino de 9 anos, querendo se proteger da vida, da percepção da terapeuta, dos maltratos, da solidão, desenha atrás do óbvio uma saída, uma pequena fresta de esperança… Um risco de cor clara, na página suja, escura e feroz que é sua vida. Ainda resta um pouco de sonho, alguma força, um tímido raio de sol, no corpinho frágil, invadido e ressentido do menino de 9 anos, esquecido pela vida e pela dignidade.

sábado, 3 de novembro de 2012

Queria ir. Queria viajar sem documentos, sem fotografias, sem peso, sem malas. Sem memórias, sem meus pensamentos. Queria ir sem minhas digitais, minhas dores, meus amores. Queria ir. Abandonar o vício. Não reconhecer a imagem refletida no espelho. Quebrar as molduras, desconstruir, vazar, me esparramar... Me recriar. Te perdoar. Me castigar. Queria ver tudo lá de longe, lá do alto. Flutuar. Ser leve, ser solta, ser só. Desamarrar. Desaparecer. Para nunca retornar. De vez em quando mergulhar no azul de algum mar. Me atirar sem pensar. Me limpar, me alimentar, me saciar. Me vingar. Queria ir e me esconder das noites escuras no escuro das noites. E me perder. E te perder. E não saber quem sou e quem tu és. Esquecer. Queria ir, não consigo Fico, então. Ficamos nós, covardes que somos.

terça-feira, 2 de outubro de 2012


SOBRE CLARICE


Curso sobre Clarice. Sala lotada.
Professor é uma referência na cidade. Um intelectual, artista, compositor.
A sala está cheia de mulheres. Acho que umas 18. Todas arrumadas, pintadas, bem vestidas.
O lugar é um centro de cultura que tem como objetivo difundir o conhecimento, proporcionar lazer, para pessoas com dinheiro, daí não estranhar as marcas das bolsas, os carros em que ela vieram, os seus óculos. Suas posturas. Todas bem sentadas nas poltronas verdes da sala agradavelmente resfriada pelo ar condicionado.
Homens, fora o professor são 3. Discretamente misturados entre as mulheres. Como sempre essa média entre mulheres e homens, 6 para cada...
Mas talvez o número de mulheres seja grande, não pelas estatísticas conhecidas. Mas porque se trata de um curso sobre uma mulher.
Não sei. Sobre uma mulher corajosa, sensível, amarga, introspectiva. Talvez o número de homens seja pequeno por se tratar dessa mulher em especial: Clarice.
Não são muitos os homens que não se sentem ameaçados... Mas lá estão esses poucos representantes do sexo forte. Camuflados, escondidos e quietos entre mulheres inquietas. Elas querem ser notadas, eles querem parecer invisíveis. Elas levantam e se servem de vinho, café, biscoitos. Eles fingem não estar com sede e nem fome. Querem o maior anonimato possível. O porquê não sei dizer.

O professor já me conquistou em  outros cursos. É de uma sensibilidade e aparente delicadeza que impressionam. É sensível, suave, claro, tranquilo, escolhe palavras e gestos que não nos deixam distrair.

Começa a fazer paralelos entre Clarice, sua época, seus contemporâneos. Seus críticos. A dificuldade de toda a crítica, de hoje e de sempre, de enquadrar a grande literatura de Clarice na literatura chamada grande, dos grandes literatos.
O que me deixa feliz, pelas minhas ambições, é quando quase concluímos que uma grande literatura pode ser fruto de um cotidiano simples, focado através de lentes precisas, afiadas, transparentes. Um pouco a vida como ela é... 
Verdades. Realidades. Ironia. Paixão. Atenção.
Um olhar sobre as coisas, do jeito que as coisas são.
Quase como uma criança genial, olhando.
Com pureza. Mas também com dureza.
Uma verdade crua e indigesta para tanta gente.

Clarice, mulher corajosa e pouco ligada ao material.  Que não se deslumbrou com salões e cristais. Com viagens e brilhos. Gostava muito mais do ser humano e dos momentos que parecem banais, mas são tesouros, de tantos significados.

Clarice que ama os animais e os respeita. Que imagina o que eles sentem, como se angustiam e quanto devemos respeitá-los.  Clarice que faz questão de nos mostrar como a vida é feroz e brusca e negra.
Clarice que observa tudo com seu caleidoscópio multi-multi-facetado.

Clarice que se amedronta com baratas e lhes confere tanta importância. Clarice que descontrói o que estava construído em nós.

Perguntas são respondidas com competência e brilhantismo. Nosso professor é um apaixonado pelas letras, palavras e Clarice.

Para finalizar a primeira aula, a leitura de um texto conhecido, mas que se renova a cada leitura, como toda e melhor arte. Pausadamente, claramente, as escolhidas palavras de Clarice, são ditas pela voz agradável do professor e ficam ecoando nos nossos corações, em nossas almas. Sim, os textos de Clarice mexem com nosso sangue, não em nossas razões. Nos fazem ferver, nos fazem arrepiar, nos fazem tremer...

Estou sentada bem próxima a ele. Consigo enxergar facilmente a lágrima que desce de seus olhos e pinga no papel. Me emociono também.

Lá em cima, lá embaixo, onde estiver, Clarice está em estado de graça. Continua nos fazendo enxergar.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quem dá o tom?


Um campeão de vendas.

10 milhões de cópias vendidas em menos de 2 meses!

Um fenômeno devorado quase que exclusivamente por mulheres: 99% dos leitores mundiais são as mulheres.

Um romance escrito por uma mulher, falando de mulher, dos desejos dessa mulher, dos prazeres dessa mulher, lido assim tão avidamente por tantas mulheres...

Qual seria o ingrediente mágico e provocador que está naquelas páginas, que as faz consumir tão rapidamente os livros?

Que tipo de segredo ou enredo faria desse romance um sucesso assim?

Espalhados pelo mundo, em tantos idiomas, em tantas mãos femininas, o primeiro e o segundo volume de uma trilogia best seller.

E as mulheres querem mais!

Já estão nas portas das livrarias ou tentando baixar na net o terceiro volume.

Vale lembrar que o primeiro volume bateu o recorde de downloads entre os e-books, ultrapassando 1 milhão!

Quem é essa escritora capaz desse feito, que nunca tinha escrito antes, que não era conhecida?

Quem é essa dona de casa, mãe de filhos adolescentes, que encontrou esse tom perturbador, perverso e estimulante?

Teria ela um dom desconhecido, fantástico, seria ela a melhor escritora de todos os tempos?

Não, não tem a ver com dom.

Só uma descoberta de um filão ansioso por esse tipo de leitura.

Acredito mais nas luzes que ela usou para alcançar esse resultado, nos tons que ela escolheu para desenhar esse tão conhecido encontro entre um homem e uma mulher.

Mulheres que querem ler sobre sexo, que acham gostoso ler sobre sexo e que finalmente estão dizendo isso aos quatro ventos e aos seus maridos.

Mulheres que finalmente admitiram que também gostam de erotismo. De alguma coisa que pode beirar o pornográfico, o vulgar.

Estão com os livros nas salas de espera dos consultórios, nas suas mesas de cabeceira, nos bancos dos ônibus, nas mesas dos cafés. Não escondem mais.

Mulheres que estão felizes pela vida vivida pela protagonista jovem e virgem, pelo que ela experimenta.

Elas sentem prazer com o prazer da outra. E ficam felizes por isso.

Algumas admitem que gostariam de experimentar algumas coisas que conheceram nos livros, outras admitem que gostariam de outras coisas e outras ainda gostariam de todas as coisas que leram nos livros... Outras até assumem que nada era novo para elas.

Claro que sempre tem algumas que se dizem horrorizadas pelo que leram. Mas é assim mesmo, sempre tem exceção à regra!

A protagonista apaixona-se pelo seu parceiro das aventuras logo no início do livro.

Amor e sexo misturados. Amor e erotismo. Amor e fetiches.

Será que finalmente depois de quase 50 anos de lutas para terem os mesmos direitos que os homens, as mulheres se sentem liberadas para dizer que gostam de algumas práticas diferentes na vida sexual?

Ou será que só estão dizendo isso porque estão amparadas pelo amor que está junto no romance?

Ainda precisam de amor para viver o sexo?

Ainda precisam acreditar no príncipe encantado e nos contos de fada?

Mulheres, tantas mulheres, se tornando uma só.

Um perfil novo de mulher.

Uma mulher nova que quer dar o tom.

Que, apesar da contradição aparente de querer ser dominada, quer também ser dominante.

Quer dar o tom.

Na verdade, escrevi isso para me ajudar a entender. Entender esse fenômeno.

Mas desisti.

Se nem Freud, que assumiu não saber definir o que deseja a mulher depois de tantos anos de estudo sobre o feminino, quem sou eu para desvendar alguma coisa?

Só me sinto feliz por estarmos mais livres.

Por podermos falar mais abertamente sobre desejos, sobre nosso corpo, nosso erotismo, nossos prazeres.

Gosto dessa ideia de dizermos para os homens aonde eles devem ir, como devem percorrer esse caminho e que também gostamos do que eles gostam.

Gosto dessa ideia de fingir aceitar essa submissão, mas na verdade estar realizando nossos próprios desejos e ser menos hipócritas, mais corajosas.

Já estava na hora. O tom também sou eu quem dá!




sexta-feira, 14 de setembro de 2012

 Medo, impunidade e travesti


Cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo, me confirmam a fragilidade do que é viver.
A vida como pena, leve, fugitiva, rápida, efêmera.
Não é minha, não tem dono, não é de ninguém. Não é sua também.
É do acaso. Do imponderável.
Pode ser de um irresponsável, do resultado da injustiça social, da impunidade, das drogas.
Minha definitivamente não é. Não é sua também.
O segundo que passou poderia ter sido determinante, fatal, o último.
Não foi. Mas poderia ter sido.
E mudou o instante próximo e o segundo próximo, e todos os que seguiram...
Os meus e os da minha família.
Sábado de tarde, num sábado de repouso, de descanso, de planos, de família, de aconchego, fomos invadidos.
Nós quatro, invadidos por todos os poros.
Por todos os cantos, por nossas veias, pupilas e pelas narinas.
Fomos tomados pelo medo, em cada pedacinho de nós, nas nossas gavetas, nos nossos esconderijos mais ingênuos e profundos, no nosso mais raso pensamento.
Na alma e nos nossos conceitos todos.
Nos tesouros de valor sentimental de cada um, uma mão suja e sem dó vasculhou, desvirginou.
Fomos arrombados e sangramos.
Machucados invisíveis , mas de muita dor.
Nós que trabalhamos, que construímos nosso dia a dia, que cuidamos do outro, que dividimos, damos empregos, olhamos o próximo, respeitamos.
Nós quatro que pagamos impostos, somos descontados na fonte, que não atrasamos nossas prestações. Nós que não deixamos o nosso alimento e o nosso cobertor nos fazer esquecer da fome e do frio do outro.
Nós quatro que fazemos trabalhos voluntários, que não esquecemos das diferenças e que tentamos ser o mais justos e humanos possíveis.
Vítimas de menores perante a sociedade, vítimas da impunidade.
Da chance que não os faz melhores, só os faz mais brutos, “mais maus”.
Menores maus, sim!
Porque são diferentes do menores bons, daqueles que percorrem caminhos mais difíceis, mais longos, porém corretos.
Não digo que seja fácil, aqui, no meio de tanta injustiça social.
Mas também eu poderia comparar a minha vida regrada, esforçada, contada, com a vida do político inescrupuloso, do empresário sonegador, dos foras da lei, dos que enganam, dos que levam vantagens...
Meu filho foi parar numa delegacia, porque a polícia pegou os meninos em flagrante. 
Precisava ser feito um boletim de ocorrência.
Nós, então, nos sentimos seguros, porque estávamos sendo acompanhados por policiais, sendo protegidos.
Nós nos sentimos num país de primeiro mundo quando soubemos que a perícia viria em casa para recolher dados para a investigação e o processo.
Nós achamos que já que eles (os meninos) tinham sido pegos em flagrante, recuperaríamos o que fora roubado, menos a dignidade, é claro. Essa é difícil de recuperar. E a tranquilidade também, porque tudo virou de cabeça para baixo.
Mas os bens materiais, que também não fazem falta nessas circunstâncias, voltariam...
Claro que não voltaram, completamente. Ficaram por aí. Espalhados.
Entre marginais e policiais. Num acordo mudo e sujo.

Nós nos calamos. Porque é mais seguro, conveniente. Não ganharíamos nada, mesmo. Só poderíamos perder.
Os menino-ladrões saíram da delegacia antes do meu filho. Eles já tinham antecedentes, muitos até portando armas, mas não fez diferença. E olha que as armas não eram de brinquedo, não eram de meninos!
Não iam para lugar algum de detenção, porque estava tudo lotado, porque não tinha nexo, porque amanhã mesmo estariam soltos.
Saíram antes do meu filho, amparados pelos pais e por nossas leis caducas.
Devem ter feito um lanche e descansaram antes do meu filho voltar para casa.
Meu filho ficou bastante tempo na delegacia. Meu filho precisou cumprir a burocracia.
Precisou assistir a conversa da delegada com o travesti que tem fetiche por sapatos. Precisou conhecer a história do travesti que não consegue passar impune por sapatos de salto alto nas vitrines de calçadas suspeitas onde se satisfaz e satisfaz outros homens. Precisou ouvir a quantidade de sapatos que o travesti reincidente se orgulhava de possuir em seu armário, e até ficou sabendo do par de sapatos de salto alto vermelho que um dia ele presenteara a delegada, porque ele devia ser mais feminina...

Nossa casa vai virar uma prisão. Já estamos fazendo orçamentos de grades, câmeras e alarmes.
Nossa casa parece desconhecida para nós agora. Parece suja. Não é mais a mesma.
Não é mais amiga. Desconfiamos dela.
Nos trancamos agora com todas as chaves possíveis.
Andamos amedrontados por seus corredores, não nos divertimos mais com as sombras.
Pelo menos por enquanto é assim.
Porque está tudo ainda muito fresco na lembrança.
Depois? Depois ainda não sabemos.
Vamos nos resignar. Vamos esperar a justiça fazer sua parte.
Dizem por aí que ela tarda mas não falha, não é?




segunda-feira, 13 de agosto de 2012


DESPEDIDA



Você estava deitada na cama do quarto do hospital havia quase um mês.

Não era verdadeiramente deitada, ou uma escolha sua.

Você tinha chegado lá porque uma ambulância te levara.

Você estava deitada porque não conseguia ficar em pé.

Você estava doente de uma doença que não escolhera, mas que te escolhera.

Havia quase meio mês que você estava desacordada, em coma induzido.

Estive lá, ao seu lado, esse tempo todo.

Mas o tempo foi pouco para o que eu precisava estar.

Pouco para me acostumar a te perder.

Pouco tempo, ou quase nada, para abraços, para dizer mais vezes o quanto te amava, que te compreendia, para te pedir desculpas por quando pensei que não te compreendesse. Desculpas por ter te feito chorar, por ter te deixado triste, por não ter te feito rir mais vezes.

Por ter te preocupado muito, por ter tirado seu sono em muitas noites compridas.

Pouco tempo para despedir de alguém que nunca quis que partisse.

Afinal, desde o meu primeiro choro, você estava lá comigo. Eu estava com você, desde o primeiro ar que respirei.

Antes disso até, quando ainda não era eu, mas sim uma extensão sua.

Quando você me alimentava, me ajudava a respirar, me fazia crescer, me fazia pessoa.

Trabalhando minuciosamente, artisticamente, divinamente para me colocar pronta no mundo, quando chegasse a hora.

Pronta para quase tudo. Menos para viver sem você.

A transformação que passamos você e eu naqueles dias não dá para ser descrita.

Não é experiência que possa ser repetida, antecipada, compartilhada.

Foi sua e minha. Nossa.

Cada olhar, cada lágrima, cada segundo de dor, cada segundo de amor, cada segundo de pavor.

O seu olhar amedrontado, seu pedido mudo de descanso, seus dedos frios, finos e sem cor entre as minhas mãos trêmulas.

Vivência sua e minha. Só nossa.

A intimidade que era nossa, quando eu ainda estava em seu ventre, quando ainda era um pedaço seu, voltou nos nossos últimos dias.

Eu te banhava, te alimentava, te ajudava com todas as necessidades.

Eu nem percebia que éramos duas.

Você não tinha apetite, eu também não. Você sentia dor, eu também sentia a sua dor.

Sua fraqueza era minha também.

A insegurança e o medo eram nossos.

A imagem da morte assombrava nós duas.

Eu enxugava as lágrimas que caiam dos seus olhos, no meu próprio rosto.

E o resto da esperança que tentávamos cultivar, de vez em quando, se tornava palavras em sua boca ou na minha, que eram rapidamente engolidas pelo nosso vômito, pelo nosso enjoo.

De vez em quando adormecíamos juntas, no torpor da morfina, na exaustão da fé.

Rezamos juntas, em uma só voz.

Agradecemos juntas.

Sorrimos um sorriso fraco, sem cor e sem dentes, sem som, para alguns amigos que vieram nos visitar.

Enganamos com maestria aqueles que sofriam mais por nós do que nós, para poupá-los.

Deixamos os médicos acreditarem que confiávamos neles. Que acreditávamos em sua competência contra o destino, em sua batalha contra o inexorável.

Cúmplices, nós duas, mãe e filha.

Quando a hora chegou, seu coração fraquinho tornou-se gigante, preenchido completamente por todo o amor que você sentiu em vida.

Amor por todos, pela beleza da vida, amor que você não economizou, e sempre ensinou.

Amor ao próximo, amor na sua mais pura forma.

Amor ingênuo. Amor de graça.

Na cama, seu corpo desapareceu. Sua roupa, seu cheiro, seu soro, sua doença, seu travesseiro, seu lençol, seu óculos...

Um enorme coração pulsante, brilhante, sadio, tomou conta do quarto.

Sua alma, mamãe, era um coração.

Um coração que continua a bater, com sangue a circular e que me impulsiona toda vez que a vida tenta me machucar.

Um coração que me acompanha, que se emociona comigo, que dispara com minha alegria, que bate sem tempo, sem limite, sem dor, sem medo, sem fim...

Em mim.


sexta-feira, 3 de agosto de 2012



Ontem ouvi sobre intimidade.
E fiquei pensando no que isso quer dizer.
O que significa ser íntimo de alguém.
Primeiro que tudo, esse alguém tem que querer ser íntimo da gente. Porque é uma via com dois sentidos.
Um e outro têm que abrir a alma, o coraçāo. As mentiras. O belo e o feio. O fácil e o difícil, o puro e o impuro.
Intimidade é verdade, antes de qualquer coisa.
E ficar nu, despido, vulnerável, sempre.
É receber, é dar, é não esperar em troca. 
Não tem a ver com crédito e nem débito.
Eu te percebo. Você me percebe.
Não te peço nada, mas você me dá o que tem. 
Te dou o que precisas e talvez o que eu não possua também.
Não foi assim desde o começo, mas foi ficando assim. 
Cada vez mais estreito, mais vital, mais surpreendente.
Adivinhamos o outro? Somos videntes entre nós? 
Somos tão próximos que nāo sei onde termino e onde você começa. 
Não te pergunto mais e, mesmo assim, você responde. 
Adivinhas? Adivinho eu? 
Sei no alô quando você precisa mais de mim. 
Sabes, pelo tom da minha voz, que quero falar e não precisar me arrepender depois. 
Posso tudo despejar em você e não me preocupar com o que caiu errado, o que caiu fora do lugar.  
Não nos preocupamos com a nossa bagunça, com a ordem, com nossas desordens...
Não temos regras entre nós. 
Não temos relógios, trajes, chaves e nem moedas. Não existem cerimônias entre nós.
Temos a simplicidade dos que vivem sem nada e muito possuem.
Com você e por você sou rica, te faço rico.
Nossa intimidade não tem medida, não tem dose certa. 
Uns a invejam. Outros tentam imitá-la. Bobagem.
Ela é única, entre íntimos.
E eu, demorei para perceber. Para entender.
Nem você, nem eu podemos nos livrar dela. Nem você, nem eu vamos nos esquecer dela.
Nossa intimidade nasceu um pedaço em mim, outro em você. E se uniram, os pedaços, se completaram quando nos encontramos. 
Mesmo quando desencontrados, conhecemos os caminhos e nos achamos mais em frente.
Hoje, quando me olho no espelho, te vejo lá. Atrás de mim, sobreposto a minha imagem, misturado com a minha verdade, completando o que sou, entendendo quem sou.
Nos meus olhos, encontro, cúmplices, os seus. 
No batimento de meu coração, reconheço o  seu ritmo tão particular.
Rimos juntos, calamos juntos. 
Durmo seu sono e você se alimenta do que não me servi. 
Não nos importamos em usar os mesmos talheres e dividimos nosso copo, nossa água, nossa água benta, se precisar. Nos alimentamos, um ao outro, com as mãos, e repartimos o nosso pão.
Faço a cama que você dorme e te cubro quando sentes frio. 
Quando amanhece, o cheiro do café preto e forte, que tanto gosto, me dá bom dia com sua voz, na mesa da minha cabeceira.
Levanto e, quando estou no chuveiro, cantando desafinada, rio sozinha ao lembrar da primeira vez que você me escutou acompanhar a Maria Bethania no rádio do carro. Você disse que não era possível cantar tão mal como eu. Mas disse isso de um jeito tão bom, que não me impediu de continuar cantando.
Hoje, cantamos juntos. 
Fazemos duetos. 
Mesmo desafinados, fazemos músicas. Somos instrumentos que andam juntos, que dão ritmo. 
Somos emoçāo à flor da pele. 
Somos arrepio e lágrimas.
Somos dor e alívio.
Somos íntimos, você e eu. 
Somos presentes um para o outro.
E o seremos pra sempre.

segunda-feira, 25 de junho de 2012


Ela era uma mulher como eu.

Parecia aflita, olhava para trás a cada minuto, como se estivesse sendo perseguida.

Estava sentada na calçada, escondida entre os vasos com plantas que enfeitavam a entrada da loja chique, nesse bairro chique da cidade.

Ela era negra. Escura.

Escura como o que nos amedronta: um quarto sem luz, uma porta para o desconhecido, um túnel, a tempestade, a noite.

Ela era para nós o retrato do medo e nós para ela o que seríamos?      

Teria medo de mim? Teria medo de nós?

Ela era negra, escura, retinta. Seus cabelos estavam despenteados e conseguiam ser mais negros que a pele da negra.

Ela coçava o pescoço o tempo todo, como um tique, ou porque estava suja, não sei.

Seus olhos eram negros e inquietos e tristes...

A única cor diferente do negro estava nos seus olhos. Um pouco de branco para aliviar o escuro.

Seus dentes, não pude ver. Ela não sorriu. Ela não sorria.

Era quase esquálida. Ossos e pele.

Era magra demais. Era fome demais. Era tristeza demais.

Na verdade, ela parecia um bicho enjaulado.  Uma pantera negra.

Ela estava enjaulada por nós, por mim. Enjaulada numa posição desprivilegiada, marginalizada, acorrentada.

E pior que tudo, resignada.

Estava onde a colocamos. Não brigava, não lutava, nada tentava...

Ou talvez já tivesse aprendido que nada adiantava. Era aquele o seu lugar.



Mas ela era igual a mim. Nós éramos mulheres da mesma espécie.

Humana? Já não sei mais o que quer dizer isso...

Nós éramos iguais. Mas eu saía da loja com uma roupa nova na sacola da cor de ouro.

Meu carro me aguardava com o manobrista fantasiado com luvas, e quepe e submissão.

Dentro do carro, o ar com certeza estaria agradável, não estaria esse inferno que está na calçada, esse inferno que faz a negra brilhar e brilhar e espelhar mais e mais a cada minuto a minha vergonha.

Roupa nova para quê mesmo?

Que coisa sem senso, que coisa insana!

Para que mesmo uma roupa bonita, cara, se ali na calçada a moça se esconde amedrontada de sei lá o que ou sei lá quem?

Será que se esconde do dia? Será que é do dia que ela tem medo? Do claro? Do mais claro possível?

Do branco? Do limpo?

Ela está ensopada. Sua blusa está grudada em seu corpo e suas costelas marcam a roupa de cor nenhuma.

Ela é uma poça. Um saco de lixo vazio, um cachorro.

Ela não se sente gente...

E eu, me envergonho de estar em pé. De ter comido hoje, e ontem. De ter tomado banho, de ter dormido em lençóis de linho, de ter pensado em qualquer outra coisa que não essa mulher que agoniza em silêncio. Quieta. Envergonhada. Tímida. Como se não tivesse direito ao grito, ao ar...

Ela é minha cegueira. Ela é o que finjo ignorar. Ela é o peso que não quero no meu corpo.

Eu não sou gente!

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Que vida é essa? E quantos anos vou ter quando morrer? E quantos anos ainda, antes de morrer ( morte, mesmo ) viverei amortecida? Que vida é essa que fazem viver? Não gosto desse avanço da medicina, dessa tecnologia, que me mantem viva, pendurada por fios, marionete daquilo que fui, numa vida que não era mais para ser minha. Não gosto de acordar em dias que não eram do meu destino, da minha sina. Não queria mais passar insone inúmeras e longas noites de outros, não minhas. A vida ficou dolorosa, arrastada, descompassada, e eu, fiquei na pista sozinha, dançando sem par, uma música que não conheço. A ressonância, a imagem, a contagem, não são resultados meus, são resultados do que me tornaram e do que me tornei, para viver esses dias que não me pertencem. Como tudo era mais simples, quando morríamos na nossa hora de morrer! Era pá, pum... E o mundo não estaria hoje com 7 bilhōes de pessoas! E o mundo estaria agradecido, estaria dando conta.  Não faltaria água, nem comida. Não sobraria lixo. Não sobraria dor.  Quando morreram, os que morreram, porque não tinham direito à essa espetacular medicina, morreram em sua hora. Morreram dignamente. Morreram de uma única vez. Sem sofrimentos adicionais, sem acessórios de prolongar a vida... Mirabolantes procedimentos cirúrgicos. Intestinos acoplados, bixigas no estômago, hastes de titânio na coluna, clips no cérebro... E o ser humano vai vivendo mais do que era pra viver. Mas eu não queria isso. Não quero isso. Queria morrer na hora. Na minha hora certa. Já não tenho mais os amigos que tive.  Já não tenho mais parceiros, e se os tivesse, não sei para que serviriam. Já não ouvem mais minhas histórias, já não interesso a mais ninguém. Ninguém mais lembra do bonde como eu, ninguém mais divide memórias comigo. Ninguém me escuta, nem me deixam falar. Me atropelam, passam por cima e nem percebem. Estou só num mundo que não caibo. As fotos que guardo na gaveta são imagens que só eu conheço, que nada dizem a outro alguém. Não queria viver tanto. Não queria que minha vida tivesse sido alongada. Porque não adianta esse alongamento, sou como se já tivesse sido.  Sou a continuação sem sentido de um filme que já acabou. Minha pele sobra no corpo, não tem brilho, não tem cor, e não se lembra mais do que é ser tocada.  Não, não queria esse tempo que me deram. Só queria o meu tempo. Me colocaram no canto, numa fila que não queria estar. Vivo num tempo de espera. As pessoas em volta, nem me percebem, e quando, num descuido, nossos olhos cruzam, elas imediatamente desviam, para não perder seu tempo comigo. E o meu tempo sobra! Não sei o que fazer dele. Conto as horas para almoçar, conto as horas para o banho, conto as horas para dormir. E elas parecem não acabar. Sobram horas no meu viver. Já queria estar em paz. 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Nao me agradam os nomes que dão à sua condição: demência senil, Alzheimer, esclerose... Acho que são nomes fortes, frios, duros e nada simpáticos. E a simpatia é uma das principais características de meu pai.  Para mim, ele está só esquecidinho. A memória do meu paizinho, que tem 85 anos, não está assim tão afiada, é verdade!   Meu pai não consegue mais fixar o que acontece em seus dias, suas semanas, seus meses, seus anos. Nesses últimos cinco anos, o que viveu, passou. Nada ficou registrado, parece que nada teve importância. Mas não é bem assim. Ele, na sua sabedoria, guarda o que vale a pena guardar bem escondidinho... Papai vive agora dependendo dos outros. Ele precisa estar sempre com alguém para funcionar  "Está na hora de acordar, já é hora de ir dormir, vamos tomar banho, venha almoçar, pare de se coçar." E ele, pelo seu lado, parecendo um disco de vinil arranhado, não se cansa de repetir as mesmas perguntas ( de um cardápio do dia):  "Já almocei hoje? Com quem almocei? O que comi, se já almocei. Onde está minha carteira, de quem é essa chave, esse relógio é meu?" Meu pai foi e continua sendo uma pessoal especial. Tem carisma, humor, inteligência, alegria, prazer em viver. Gosta muito de viver! Ama viver! É agradecido a vida e sempre nos ensinou que a vida é presente.   Até quando começou a esquecer, quando começou a ficar esquecidinho, teve bom humor para rir de si próprio e fazer piadas com alegria e rapidez com a sua condição. Somos três filhos, noras, genros, netas e netos, agregados, sempre orbitando à sua volta. Sempre tentando segurá-lo na realidade por um fiozinho que teima em escapar pelos nossos dedos... Dormi essa noite na casa de meu pai porque ele tinha passado mal durante o dia e teve que ir para o hospital, onde fez vários exames, o que nos deixou assustados e amedrontados pelo aviso desse fantasma que insiste em nos rondar. Meu pai tem acompanhantes que moram com ele, mas resolvi dar uma força extra, ficando por lá, caso tivéssemos outras surpresas desagradáveis.  Estaria com o carro na garagem, estaria alerta... E foi então, nessa noite, que pude comprovar a existência dos anjos da guarda.  Pude ter certeza que minha mãe, que já nos deixou, olha por ele.  Que em algum lugar especial, não muito longe, meu pai tem um grande número de fãs, que torcem por ele e o acompanham sempre. Quantas vezes durante essa noite ouvi o arrastar de seus chinelos azuis pela casa? Agora entendi porque, durante o dia, eles descansam ao lado da cama, em frente ao criado mudo, exaustos. Foram tantas vezes, que nem eu lembro. Quantas vezes ele foi até a cozinha para tomar seu guaraná, comer suas bolachas? Quantas vezes foi ao banheiro, escovou os dentes? Veio ao meu quarto, foi ao quarto da acompanhante para ter cerrteza de que ela estava lá? Foi até a sala procurar seus passarinhos e quantas vezes o vi dar corda em seu relógio automático, concentradíssimo? Meu pai, na escuridão da noite, no escuro de sua memória, perseguido tão de perto pelas sombras, tinha passos decididos, passos jovens. Meu pai era outro na noite. Para mim pareceu que ele cumpria os compromissos de uma agenda. Compromissos que tinha agendado com ele mesmo. Corajosamente e independente ele enfrentava um monte de afazeres. No meio da noite meu pai era de novo, dono de si, destemido. No meio da noite, os olhos do meu pai tinham luz e vida.  Conhecia como ninguém a ordem de seu caos. Na solidão da noite fria, meu pai era senhor de si mesmo,  de suas vontades, de sua história. Mais uma vez meu pai e suas surpresas!

Junto e misturado

Semana dos namorados Na televisão, nas revistas, nos anúncios da internet, nos jornais em páginas inteiras, duplas, a exaltação ao amor, a magia de amar e tudo transformar.  Não dá para esquecer: ou você tem namorado e precisa inventar um presente que seja o máximo e que confirme que voce é única ou voce não tem namorado e se sente a pior mulher do planeta. Ou você vai fazer um jantar romântico, com velas, champagne e promessas de uma noite de amor, ou você vai chorar na cama baixinho, ensopando a fronha de seu travesseiro, depois de ter fingido o dia inteiro que não é importante não ter um namorado... Para mim os caminhos parecem ser esses, não enxergo muito outras possibilidades. Semana também em que as revistas sensacionalistas, os jornais e a televisão, a internet e as conversas nos lugares todos, do mais simples ao mais bacana, falam e repetem incansavelmente o assassinato seguido de esquartejamento de um executivo, por sua mulher, uma ex-garota de programa. Semana em que o amor é exaltado, que a vida só parece ter sentido se você encontrou seu par.  Semana em que o amor se torna lixo e assassino, se torna vulgar e macabro. Depois de uma pizza, com a filha dormindo no quarto ao lado, um tiro e o fim de um amor é disparado.  Fim de coraçōes batendo em uníssono.  Fim, última página. Sem suspiro. Só susto. Jogada na cara a traição, sem medo, sem perdão. Jogados fora os beijos e incontáveis promessas de amor eterno.  Jogados fora os momentos de prazer e o vislumbre do futuro promissor.  Jogada fora a tranquilidade da filha que dorme como anjo no berço de rico.  O fato é esse: ninguém segura o traído, o amor de ontem não existe hoje, o anel de brilhante na mão direita não impede o sangue de vazar por baixo da porta e anunciar uma tragédia comum.  Ah, o desamor! No apartamento de 500 metros quadrados, a sensação é de sufoco. Ninguém é mais única. É igual aos traídos todos.  O corpo retalhado do executivo, matematicamente repartido em malas de grife, o amor se tornando vulgar, personagem de crime barato e qualquer. A mulher resgatada de uma vida fácil, transforma em segundos sua vida em inferno, e o seu príncipe em pedaços de carne. Ah, o amor! Dizem que ela pode sofrer de um distúrbio.  Dizem que essa violência que ela cometeu pode ser justificada por um componente químico produzido pelo organismo quando alguém passa por um trauma afetivo... Ah, o amor! O amor bandido, o amor romantico, o amor eterno. A insanidade do amor. As juras de amor dos namorados, do Romeu e da Julieta, da brasileira e do asiático, a celebração do amor para inglês ver, com recepção e glamour, o amor em todas as formas.  O amor tão cantado, tão cor de rosa, tão almejado. O amor tão sentido, o amor nunca compreendido. O amor vira dor. Ah, o amor!