sábado, 31 de agosto de 2013

E dai a infância invade o hoje As bonecas de cabelos loiros de nylon da menina vizinha As roupinhas mal feitas dos bichinhos de pelúcia, feitas dos restos de panos das roupas que vestíamos O cheiro forte do plástico de que eram feitas A boneca linda e morena, de cabelos pretos e longos (que adoro até hoje), vestida de havaiana,descalça, com argolas douradas nas orelhas, presente do meu pai A lousa toda escrita em giz colorido, mal apagada, o pó esbranquiçado na memória Da vitrola de pilhas tão moderna então, a musiquinha do palhaço Arrelia se repete incansavelmente. Ainda minha caixinha amarela, de música, com espelhos e a bailarina a girar. Magia. Magia pura. Só dar corda e sonhar A bicicleta arranhada e sem cor, companheira de passeios e descobertas, cansada, encostada na parede. Ecoando no ouvido, a voz do irmão contando até 10 e a gente procurando um esconderijo A buzina do carrinho que vendia sorvete, provocando vontade, frustação e sabores passava todas as tardes na rua da minha infância Quando chovia, olhava tristemente pela janela do sobrado procurando no céu a figura do sol, a liberdade, o mergulho na piscina do clube Mas também, somente nos dias de chuva, podíamos ouvir a voz de nossa mãe, como ouço agora, nos chamando para a cozinha. Bolinhos de chuva, rolados no açúcar, pipoca batucando na panela, gemadas e gelatinas coloridas e de vez em quando até lamber as pás da batedeira, e esperar, o bolo crescer, enquanto o cheiro do aconchego tomava conta da casa Ah a minha infância! Ah essa idade que tenho hoje e que me faz desejar tanto recomeçar...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

AMANTES Desencontram-se os amantes. Nos ponteiros dos relógios, nas esquinas, nos desaforos do acaso, Incertezas e insegurança. Dor e dádiva. Choro e cor. Medo e mentiras. Tantas frustraçōes, tantos segredos. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Encontram-se os amantes. Marcam hora, chegam apressados, esperam ansiosos. Beijos, juras de amor, entrega e urgência. Saudade e sorrisos. Alegria e prazer. Cumplicidade e carinhos. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Desafinam os amantes. Cada um com sua música, cada um com sua solidão, cada um no seu caminho. Momentos roubados, sempre disfarçados, sem nome e sem sobrenome. Amam demais , sofrem demais, mentem demais. Tanto sentimento proibido, tanta fantasia, tanta vontade, tanta entrega Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Perdem-se os amantes, procurando se encontrar. Amedrontados em lugares desconhecidos e suspeitos. Em lugares pequenos e sujos. Onde tentam em vão viver e preservar a pureza e a beleza do amor. Tudo escondido, tudo repartido, tudo pouco, tudo incompleto. Vivem em sobressaltos os amantes. Inventam compromissos, faltam ao inadiável. Confundem os outros e a si mesmos. Não sabem mais onde estão a verdade e a dignidade. Acreditam os amantes. No perdão, nas justificativas, na entrega. Acham-se injustiçados, acham-se privilegiados por um sentimento único. Enganam-se os amantes. São iguais a milhares, vivem como milhōes, pensam ser diferentes. Sobrevivem os amantes. Usam o oxigênio a todo instante, alternam os batimentos entre o mínimo e o incontável, oscilam a pressão, saturam o sangue... Têm as horas contadas os amantes. Agonizam, sofrem, se arrastam. Renascem a cada promessa os que amam

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

REALIDADE De repente, tudo vira nada, nada mais tem importância. Eram tantas as preocupaçōes, tantas as afliçōes. Mas, de repente, nada mais importa. Só escuto a notícia da boca de minha filha. Escuto a voz tão conhecida do outro lado da linha, e reconheço tristeza, agonia, revolta. Parece que levo um soco no estômago. Tenho uma tontura, me seguro na borda da mesa onde está o telefone. Acho que vou vomitar. Ela continua me contando, e as cenas se desenham na minha cabeça. É muito forte, é muita dor. Lá fora o dia está azul, depois de uma noite de chuva. Os carros aceleram, brecam e buzinam nos faróis. As pessoas trabalham, os estudantes estudam, as crianças brincam nas praças, os velhinhos se esquentam nos bancos. Os varredores de rua trabalham incansavelmente tentando varrer a sujeira da cidade. A cidade está começando mais um dia de vida, de rotina, de pressão. É a maior cidade do país, a mais rica, a que dá mais oportunidades. O maior salário mínimo, o maior número de creches, de escolas públicas, de hospitais. Mas ainda assim é totalmente precária, é cheia de favelas, de pobreza, de crianças despidas e desnutridas, de pé no chão, nas esquinas. É cheia de fome, de droga, de medo. Parece que quanto mais se faz, mais falta nela. Nada é bastante. Nessa cidade tudo é pouco. Só a violência é que sobra. Na televisão, nos rádios e nos jornais os últimos dias de uma campanha política para prefeito. Bobagens, non sense, acusaçōes e mentiras. De programas, de melhorias reais, de humildade e arregaçar de mangas, nada. Só prepotência, enganação e números incompreensíveis. Um bem elaborado marketing para confirmar mais uma vez que o eleitor é um palhaço. Na Europa a economia vai derrubando países como se derruba um castelo de cartas. Nos Estados Unidos, também, dois candidatos fazem seus showzinhos finais, com direito a balōes, fogos, papéis laminados e lábia porque querem ser eleitos presidente... A gente se distrai com o futebol, a seleção parece que descobriu o seu jogo, ganhando do Japão... E os donos da bola, o país do futebol fica feliz com isso. Ainda sofremos pela morte da apresentadora querida da tv e consumimos revistas de fofoca e mais revistas com tantas imagens repetidas e desbotadas, de tempos de fotos e tv em preto e branco. O sol. A lua. A terra. Eles continuam alheios a tudo e continuam a repetir monotonamente seus movimentos. E eu? Eu não sei mais nada disso. Eu não me importo mais com nada. Só penso no menino de 9 anos do abrigo. O menino de 9 anos abandonado pelos pais, pela vida, pela decência, pelos direitos. O menino que vai se tornar homem, na marra, na invasão, no desrespeito. Minha filha está acompanhando sua historia há 6 meses. Ele tinha começado a se soltar. A falar. A confiar. A desenhar. A representar. Mas e agora? A voz dele, ela disse, é um fio. O pensamento dele, ela disse, está tentando enganar aos dois. Mas ela descobre atrás da fuga, o fato. Descobre no desenho a dor e a vergonha. Um menino de 12 anos que dorme no beliche ao lado, um menino de 12 anos também maltratado pela vida, pelo padastro, pela violência, quer repetir o que viveu, quer descontar o que sofreu, quer repartir sua dor e então, machuca também. Banaliza, para superar. Enfraquece para se fortalecer. O abuso repetido será a salvação. A absolvição do pecado do outro, praticando o mesmo pecado. O choro sufocado no travesseiro, a dor entalada na garganta, a masculinidade afetada para sempre, a vergonha estampada na cara. E o menino de 9 anos, querendo se proteger da vida, da percepção da terapeuta, dos maltratos, da solidão, desenha atrás do óbvio uma saída, uma pequena fresta de esperança… Um risco de cor clara, na página suja, escura e feroz que é sua vida. Ainda resta um pouco de sonho, alguma força, um tímido raio de sol, no corpinho frágil, invadido e ressentido do menino de 9 anos, esquecido pela vida e pela dignidade.

sábado, 3 de novembro de 2012

Queria ir. Queria viajar sem documentos, sem fotografias, sem peso, sem malas. Sem memórias, sem meus pensamentos. Queria ir sem minhas digitais, minhas dores, meus amores. Queria ir. Abandonar o vício. Não reconhecer a imagem refletida no espelho. Quebrar as molduras, desconstruir, vazar, me esparramar... Me recriar. Te perdoar. Me castigar. Queria ver tudo lá de longe, lá do alto. Flutuar. Ser leve, ser solta, ser só. Desamarrar. Desaparecer. Para nunca retornar. De vez em quando mergulhar no azul de algum mar. Me atirar sem pensar. Me limpar, me alimentar, me saciar. Me vingar. Queria ir e me esconder das noites escuras no escuro das noites. E me perder. E te perder. E não saber quem sou e quem tu és. Esquecer. Queria ir, não consigo Fico, então. Ficamos nós, covardes que somos.

terça-feira, 2 de outubro de 2012


SOBRE CLARICE


Curso sobre Clarice. Sala lotada.
Professor é uma referência na cidade. Um intelectual, artista, compositor.
A sala está cheia de mulheres. Acho que umas 18. Todas arrumadas, pintadas, bem vestidas.
O lugar é um centro de cultura que tem como objetivo difundir o conhecimento, proporcionar lazer, para pessoas com dinheiro, daí não estranhar as marcas das bolsas, os carros em que ela vieram, os seus óculos. Suas posturas. Todas bem sentadas nas poltronas verdes da sala agradavelmente resfriada pelo ar condicionado.
Homens, fora o professor são 3. Discretamente misturados entre as mulheres. Como sempre essa média entre mulheres e homens, 6 para cada...
Mas talvez o número de mulheres seja grande, não pelas estatísticas conhecidas. Mas porque se trata de um curso sobre uma mulher.
Não sei. Sobre uma mulher corajosa, sensível, amarga, introspectiva. Talvez o número de homens seja pequeno por se tratar dessa mulher em especial: Clarice.
Não são muitos os homens que não se sentem ameaçados... Mas lá estão esses poucos representantes do sexo forte. Camuflados, escondidos e quietos entre mulheres inquietas. Elas querem ser notadas, eles querem parecer invisíveis. Elas levantam e se servem de vinho, café, biscoitos. Eles fingem não estar com sede e nem fome. Querem o maior anonimato possível. O porquê não sei dizer.

O professor já me conquistou em  outros cursos. É de uma sensibilidade e aparente delicadeza que impressionam. É sensível, suave, claro, tranquilo, escolhe palavras e gestos que não nos deixam distrair.

Começa a fazer paralelos entre Clarice, sua época, seus contemporâneos. Seus críticos. A dificuldade de toda a crítica, de hoje e de sempre, de enquadrar a grande literatura de Clarice na literatura chamada grande, dos grandes literatos.
O que me deixa feliz, pelas minhas ambições, é quando quase concluímos que uma grande literatura pode ser fruto de um cotidiano simples, focado através de lentes precisas, afiadas, transparentes. Um pouco a vida como ela é... 
Verdades. Realidades. Ironia. Paixão. Atenção.
Um olhar sobre as coisas, do jeito que as coisas são.
Quase como uma criança genial, olhando.
Com pureza. Mas também com dureza.
Uma verdade crua e indigesta para tanta gente.

Clarice, mulher corajosa e pouco ligada ao material.  Que não se deslumbrou com salões e cristais. Com viagens e brilhos. Gostava muito mais do ser humano e dos momentos que parecem banais, mas são tesouros, de tantos significados.

Clarice que ama os animais e os respeita. Que imagina o que eles sentem, como se angustiam e quanto devemos respeitá-los.  Clarice que faz questão de nos mostrar como a vida é feroz e brusca e negra.
Clarice que observa tudo com seu caleidoscópio multi-multi-facetado.

Clarice que se amedronta com baratas e lhes confere tanta importância. Clarice que descontrói o que estava construído em nós.

Perguntas são respondidas com competência e brilhantismo. Nosso professor é um apaixonado pelas letras, palavras e Clarice.

Para finalizar a primeira aula, a leitura de um texto conhecido, mas que se renova a cada leitura, como toda e melhor arte. Pausadamente, claramente, as escolhidas palavras de Clarice, são ditas pela voz agradável do professor e ficam ecoando nos nossos corações, em nossas almas. Sim, os textos de Clarice mexem com nosso sangue, não em nossas razões. Nos fazem ferver, nos fazem arrepiar, nos fazem tremer...

Estou sentada bem próxima a ele. Consigo enxergar facilmente a lágrima que desce de seus olhos e pinga no papel. Me emociono também.

Lá em cima, lá embaixo, onde estiver, Clarice está em estado de graça. Continua nos fazendo enxergar.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quem dá o tom?


Um campeão de vendas.

10 milhões de cópias vendidas em menos de 2 meses!

Um fenômeno devorado quase que exclusivamente por mulheres: 99% dos leitores mundiais são as mulheres.

Um romance escrito por uma mulher, falando de mulher, dos desejos dessa mulher, dos prazeres dessa mulher, lido assim tão avidamente por tantas mulheres...

Qual seria o ingrediente mágico e provocador que está naquelas páginas, que as faz consumir tão rapidamente os livros?

Que tipo de segredo ou enredo faria desse romance um sucesso assim?

Espalhados pelo mundo, em tantos idiomas, em tantas mãos femininas, o primeiro e o segundo volume de uma trilogia best seller.

E as mulheres querem mais!

Já estão nas portas das livrarias ou tentando baixar na net o terceiro volume.

Vale lembrar que o primeiro volume bateu o recorde de downloads entre os e-books, ultrapassando 1 milhão!

Quem é essa escritora capaz desse feito, que nunca tinha escrito antes, que não era conhecida?

Quem é essa dona de casa, mãe de filhos adolescentes, que encontrou esse tom perturbador, perverso e estimulante?

Teria ela um dom desconhecido, fantástico, seria ela a melhor escritora de todos os tempos?

Não, não tem a ver com dom.

Só uma descoberta de um filão ansioso por esse tipo de leitura.

Acredito mais nas luzes que ela usou para alcançar esse resultado, nos tons que ela escolheu para desenhar esse tão conhecido encontro entre um homem e uma mulher.

Mulheres que querem ler sobre sexo, que acham gostoso ler sobre sexo e que finalmente estão dizendo isso aos quatro ventos e aos seus maridos.

Mulheres que finalmente admitiram que também gostam de erotismo. De alguma coisa que pode beirar o pornográfico, o vulgar.

Estão com os livros nas salas de espera dos consultórios, nas suas mesas de cabeceira, nos bancos dos ônibus, nas mesas dos cafés. Não escondem mais.

Mulheres que estão felizes pela vida vivida pela protagonista jovem e virgem, pelo que ela experimenta.

Elas sentem prazer com o prazer da outra. E ficam felizes por isso.

Algumas admitem que gostariam de experimentar algumas coisas que conheceram nos livros, outras admitem que gostariam de outras coisas e outras ainda gostariam de todas as coisas que leram nos livros... Outras até assumem que nada era novo para elas.

Claro que sempre tem algumas que se dizem horrorizadas pelo que leram. Mas é assim mesmo, sempre tem exceção à regra!

A protagonista apaixona-se pelo seu parceiro das aventuras logo no início do livro.

Amor e sexo misturados. Amor e erotismo. Amor e fetiches.

Será que finalmente depois de quase 50 anos de lutas para terem os mesmos direitos que os homens, as mulheres se sentem liberadas para dizer que gostam de algumas práticas diferentes na vida sexual?

Ou será que só estão dizendo isso porque estão amparadas pelo amor que está junto no romance?

Ainda precisam de amor para viver o sexo?

Ainda precisam acreditar no príncipe encantado e nos contos de fada?

Mulheres, tantas mulheres, se tornando uma só.

Um perfil novo de mulher.

Uma mulher nova que quer dar o tom.

Que, apesar da contradição aparente de querer ser dominada, quer também ser dominante.

Quer dar o tom.

Na verdade, escrevi isso para me ajudar a entender. Entender esse fenômeno.

Mas desisti.

Se nem Freud, que assumiu não saber definir o que deseja a mulher depois de tantos anos de estudo sobre o feminino, quem sou eu para desvendar alguma coisa?

Só me sinto feliz por estarmos mais livres.

Por podermos falar mais abertamente sobre desejos, sobre nosso corpo, nosso erotismo, nossos prazeres.

Gosto dessa ideia de dizermos para os homens aonde eles devem ir, como devem percorrer esse caminho e que também gostamos do que eles gostam.

Gosto dessa ideia de fingir aceitar essa submissão, mas na verdade estar realizando nossos próprios desejos e ser menos hipócritas, mais corajosas.

Já estava na hora. O tom também sou eu quem dá!




sexta-feira, 14 de setembro de 2012

 Medo, impunidade e travesti


Cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo, me confirmam a fragilidade do que é viver.
A vida como pena, leve, fugitiva, rápida, efêmera.
Não é minha, não tem dono, não é de ninguém. Não é sua também.
É do acaso. Do imponderável.
Pode ser de um irresponsável, do resultado da injustiça social, da impunidade, das drogas.
Minha definitivamente não é. Não é sua também.
O segundo que passou poderia ter sido determinante, fatal, o último.
Não foi. Mas poderia ter sido.
E mudou o instante próximo e o segundo próximo, e todos os que seguiram...
Os meus e os da minha família.
Sábado de tarde, num sábado de repouso, de descanso, de planos, de família, de aconchego, fomos invadidos.
Nós quatro, invadidos por todos os poros.
Por todos os cantos, por nossas veias, pupilas e pelas narinas.
Fomos tomados pelo medo, em cada pedacinho de nós, nas nossas gavetas, nos nossos esconderijos mais ingênuos e profundos, no nosso mais raso pensamento.
Na alma e nos nossos conceitos todos.
Nos tesouros de valor sentimental de cada um, uma mão suja e sem dó vasculhou, desvirginou.
Fomos arrombados e sangramos.
Machucados invisíveis , mas de muita dor.
Nós que trabalhamos, que construímos nosso dia a dia, que cuidamos do outro, que dividimos, damos empregos, olhamos o próximo, respeitamos.
Nós quatro que pagamos impostos, somos descontados na fonte, que não atrasamos nossas prestações. Nós que não deixamos o nosso alimento e o nosso cobertor nos fazer esquecer da fome e do frio do outro.
Nós quatro que fazemos trabalhos voluntários, que não esquecemos das diferenças e que tentamos ser o mais justos e humanos possíveis.
Vítimas de menores perante a sociedade, vítimas da impunidade.
Da chance que não os faz melhores, só os faz mais brutos, “mais maus”.
Menores maus, sim!
Porque são diferentes do menores bons, daqueles que percorrem caminhos mais difíceis, mais longos, porém corretos.
Não digo que seja fácil, aqui, no meio de tanta injustiça social.
Mas também eu poderia comparar a minha vida regrada, esforçada, contada, com a vida do político inescrupuloso, do empresário sonegador, dos foras da lei, dos que enganam, dos que levam vantagens...
Meu filho foi parar numa delegacia, porque a polícia pegou os meninos em flagrante. 
Precisava ser feito um boletim de ocorrência.
Nós, então, nos sentimos seguros, porque estávamos sendo acompanhados por policiais, sendo protegidos.
Nós nos sentimos num país de primeiro mundo quando soubemos que a perícia viria em casa para recolher dados para a investigação e o processo.
Nós achamos que já que eles (os meninos) tinham sido pegos em flagrante, recuperaríamos o que fora roubado, menos a dignidade, é claro. Essa é difícil de recuperar. E a tranquilidade também, porque tudo virou de cabeça para baixo.
Mas os bens materiais, que também não fazem falta nessas circunstâncias, voltariam...
Claro que não voltaram, completamente. Ficaram por aí. Espalhados.
Entre marginais e policiais. Num acordo mudo e sujo.

Nós nos calamos. Porque é mais seguro, conveniente. Não ganharíamos nada, mesmo. Só poderíamos perder.
Os menino-ladrões saíram da delegacia antes do meu filho. Eles já tinham antecedentes, muitos até portando armas, mas não fez diferença. E olha que as armas não eram de brinquedo, não eram de meninos!
Não iam para lugar algum de detenção, porque estava tudo lotado, porque não tinha nexo, porque amanhã mesmo estariam soltos.
Saíram antes do meu filho, amparados pelos pais e por nossas leis caducas.
Devem ter feito um lanche e descansaram antes do meu filho voltar para casa.
Meu filho ficou bastante tempo na delegacia. Meu filho precisou cumprir a burocracia.
Precisou assistir a conversa da delegada com o travesti que tem fetiche por sapatos. Precisou conhecer a história do travesti que não consegue passar impune por sapatos de salto alto nas vitrines de calçadas suspeitas onde se satisfaz e satisfaz outros homens. Precisou ouvir a quantidade de sapatos que o travesti reincidente se orgulhava de possuir em seu armário, e até ficou sabendo do par de sapatos de salto alto vermelho que um dia ele presenteara a delegada, porque ele devia ser mais feminina...

Nossa casa vai virar uma prisão. Já estamos fazendo orçamentos de grades, câmeras e alarmes.
Nossa casa parece desconhecida para nós agora. Parece suja. Não é mais a mesma.
Não é mais amiga. Desconfiamos dela.
Nos trancamos agora com todas as chaves possíveis.
Andamos amedrontados por seus corredores, não nos divertimos mais com as sombras.
Pelo menos por enquanto é assim.
Porque está tudo ainda muito fresco na lembrança.
Depois? Depois ainda não sabemos.
Vamos nos resignar. Vamos esperar a justiça fazer sua parte.
Dizem por aí que ela tarda mas não falha, não é?