DESPEDIDA
Você estava
deitada na cama do quarto do hospital havia quase um mês.
Não era
verdadeiramente deitada, ou uma escolha sua.
Você tinha
chegado lá porque uma ambulância te levara.
Você estava
deitada porque não conseguia ficar em pé.
Você estava doente
de uma doença que não escolhera, mas que te escolhera.
Havia quase
meio mês que você estava desacordada, em coma induzido.
Estive lá,
ao seu lado, esse tempo todo.
Mas o tempo
foi pouco para o que eu precisava estar.
Pouco para
me acostumar a te perder.
Pouco tempo,
ou quase nada, para abraços, para dizer mais vezes o quanto te amava, que te
compreendia, para te pedir desculpas por quando pensei que não te
compreendesse. Desculpas por ter te feito chorar, por ter te deixado triste,
por não ter te feito rir mais vezes.
Por ter te
preocupado muito, por ter tirado seu sono em muitas noites compridas.
Pouco tempo
para despedir de alguém que nunca quis que partisse.
Afinal,
desde o meu primeiro choro, você estava lá comigo. Eu estava com você, desde o
primeiro ar que respirei.
Antes disso
até, quando ainda não era eu, mas sim uma extensão sua.
Quando você
me alimentava, me ajudava a respirar, me fazia crescer, me fazia pessoa.
Trabalhando
minuciosamente, artisticamente, divinamente para me colocar pronta no mundo,
quando chegasse a hora.
Pronta para
quase tudo. Menos para viver sem você.
A
transformação que passamos você e eu naqueles dias não dá para ser descrita.
Não é
experiência que possa ser repetida, antecipada, compartilhada.
Foi sua e
minha. Nossa.
Cada olhar,
cada lágrima, cada segundo de dor, cada segundo de amor, cada segundo de pavor.
O seu olhar
amedrontado, seu pedido mudo de descanso, seus dedos frios, finos e sem cor
entre as minhas mãos trêmulas.
Vivência sua
e minha. Só nossa.
A intimidade
que era nossa, quando eu ainda estava em seu ventre, quando ainda era um pedaço
seu, voltou nos nossos últimos dias.
Eu te
banhava, te alimentava, te ajudava com todas as necessidades.
Eu nem
percebia que éramos duas.
Você não
tinha apetite, eu também não. Você sentia dor, eu também sentia a sua dor.
Sua fraqueza
era minha também.
A
insegurança e o medo eram nossos.
A imagem da
morte assombrava nós duas.
Eu enxugava
as lágrimas que caiam dos seus olhos, no meu próprio rosto.
E o resto da
esperança que tentávamos cultivar, de vez em quando, se tornava palavras em sua
boca ou na minha, que eram rapidamente engolidas pelo nosso vômito, pelo nosso
enjoo.
De vez em
quando adormecíamos juntas, no torpor da morfina, na exaustão da fé.
Rezamos
juntas, em uma só voz.
Agradecemos
juntas.
Sorrimos um
sorriso fraco, sem cor e sem dentes, sem som, para alguns amigos que vieram nos
visitar.
Enganamos
com maestria aqueles que sofriam mais por nós do que nós, para poupá-los.
Deixamos os
médicos acreditarem que confiávamos neles. Que acreditávamos em sua competência
contra o destino, em sua batalha contra o inexorável.
Cúmplices,
nós duas, mãe e filha.
Quando a
hora chegou, seu coração fraquinho tornou-se gigante, preenchido completamente
por todo o amor que você sentiu em vida.
Amor por
todos, pela beleza da vida, amor que você não economizou, e sempre ensinou.
Amor ao
próximo, amor na sua mais pura forma.
Amor
ingênuo. Amor de graça.
Na cama, seu
corpo desapareceu. Sua roupa, seu cheiro, seu soro, sua doença, seu travesseiro,
seu lençol, seu óculos...
Um enorme
coração pulsante, brilhante, sadio, tomou conta do quarto.
Sua alma,
mamãe, era um coração.
Um coração
que continua a bater, com sangue a circular e que me impulsiona toda vez que a
vida tenta me machucar.
Um coração
que me acompanha, que se emociona comigo, que dispara com minha alegria, que
bate sem tempo, sem limite, sem dor, sem medo, sem fim...
Em mim.