quinta-feira, 22 de novembro de 2012

REALIDADE De repente, tudo vira nada, nada mais tem importância. Eram tantas as preocupaçōes, tantas as afliçōes. Mas, de repente, nada mais importa. Só escuto a notícia da boca de minha filha. Escuto a voz tão conhecida do outro lado da linha, e reconheço tristeza, agonia, revolta. Parece que levo um soco no estômago. Tenho uma tontura, me seguro na borda da mesa onde está o telefone. Acho que vou vomitar. Ela continua me contando, e as cenas se desenham na minha cabeça. É muito forte, é muita dor. Lá fora o dia está azul, depois de uma noite de chuva. Os carros aceleram, brecam e buzinam nos faróis. As pessoas trabalham, os estudantes estudam, as crianças brincam nas praças, os velhinhos se esquentam nos bancos. Os varredores de rua trabalham incansavelmente tentando varrer a sujeira da cidade. A cidade está começando mais um dia de vida, de rotina, de pressão. É a maior cidade do país, a mais rica, a que dá mais oportunidades. O maior salário mínimo, o maior número de creches, de escolas públicas, de hospitais. Mas ainda assim é totalmente precária, é cheia de favelas, de pobreza, de crianças despidas e desnutridas, de pé no chão, nas esquinas. É cheia de fome, de droga, de medo. Parece que quanto mais se faz, mais falta nela. Nada é bastante. Nessa cidade tudo é pouco. Só a violência é que sobra. Na televisão, nos rádios e nos jornais os últimos dias de uma campanha política para prefeito. Bobagens, non sense, acusaçōes e mentiras. De programas, de melhorias reais, de humildade e arregaçar de mangas, nada. Só prepotência, enganação e números incompreensíveis. Um bem elaborado marketing para confirmar mais uma vez que o eleitor é um palhaço. Na Europa a economia vai derrubando países como se derruba um castelo de cartas. Nos Estados Unidos, também, dois candidatos fazem seus showzinhos finais, com direito a balōes, fogos, papéis laminados e lábia porque querem ser eleitos presidente... A gente se distrai com o futebol, a seleção parece que descobriu o seu jogo, ganhando do Japão... E os donos da bola, o país do futebol fica feliz com isso. Ainda sofremos pela morte da apresentadora querida da tv e consumimos revistas de fofoca e mais revistas com tantas imagens repetidas e desbotadas, de tempos de fotos e tv em preto e branco. O sol. A lua. A terra. Eles continuam alheios a tudo e continuam a repetir monotonamente seus movimentos. E eu? Eu não sei mais nada disso. Eu não me importo mais com nada. Só penso no menino de 9 anos do abrigo. O menino de 9 anos abandonado pelos pais, pela vida, pela decência, pelos direitos. O menino que vai se tornar homem, na marra, na invasão, no desrespeito. Minha filha está acompanhando sua historia há 6 meses. Ele tinha começado a se soltar. A falar. A confiar. A desenhar. A representar. Mas e agora? A voz dele, ela disse, é um fio. O pensamento dele, ela disse, está tentando enganar aos dois. Mas ela descobre atrás da fuga, o fato. Descobre no desenho a dor e a vergonha. Um menino de 12 anos que dorme no beliche ao lado, um menino de 12 anos também maltratado pela vida, pelo padastro, pela violência, quer repetir o que viveu, quer descontar o que sofreu, quer repartir sua dor e então, machuca também. Banaliza, para superar. Enfraquece para se fortalecer. O abuso repetido será a salvação. A absolvição do pecado do outro, praticando o mesmo pecado. O choro sufocado no travesseiro, a dor entalada na garganta, a masculinidade afetada para sempre, a vergonha estampada na cara. E o menino de 9 anos, querendo se proteger da vida, da percepção da terapeuta, dos maltratos, da solidão, desenha atrás do óbvio uma saída, uma pequena fresta de esperança… Um risco de cor clara, na página suja, escura e feroz que é sua vida. Ainda resta um pouco de sonho, alguma força, um tímido raio de sol, no corpinho frágil, invadido e ressentido do menino de 9 anos, esquecido pela vida e pela dignidade.

sábado, 3 de novembro de 2012

Queria ir. Queria viajar sem documentos, sem fotografias, sem peso, sem malas. Sem memórias, sem meus pensamentos. Queria ir sem minhas digitais, minhas dores, meus amores. Queria ir. Abandonar o vício. Não reconhecer a imagem refletida no espelho. Quebrar as molduras, desconstruir, vazar, me esparramar... Me recriar. Te perdoar. Me castigar. Queria ver tudo lá de longe, lá do alto. Flutuar. Ser leve, ser solta, ser só. Desamarrar. Desaparecer. Para nunca retornar. De vez em quando mergulhar no azul de algum mar. Me atirar sem pensar. Me limpar, me alimentar, me saciar. Me vingar. Queria ir e me esconder das noites escuras no escuro das noites. E me perder. E te perder. E não saber quem sou e quem tu és. Esquecer. Queria ir, não consigo Fico, então. Ficamos nós, covardes que somos.