SOBRE CLARICE
Curso sobre Clarice. Sala
lotada.
Professor é uma referência na
cidade. Um intelectual, artista, compositor.
A sala está cheia de
mulheres. Acho que umas 18. Todas arrumadas, pintadas, bem vestidas.
O lugar é um centro de
cultura que tem como objetivo difundir o conhecimento, proporcionar lazer, para
pessoas com dinheiro, daí não estranhar as marcas das bolsas, os carros em que
ela vieram, os seus óculos. Suas posturas. Todas bem sentadas nas poltronas
verdes da sala agradavelmente resfriada pelo ar condicionado.
Homens, fora o professor são
3. Discretamente misturados entre as mulheres. Como sempre essa média entre
mulheres e homens, 6 para cada...
Mas talvez o número de
mulheres seja grande, não pelas estatísticas conhecidas. Mas porque se trata de
um curso sobre uma mulher.
Não sei. Sobre uma mulher
corajosa, sensível, amarga, introspectiva. Talvez o número de homens seja
pequeno por se tratar dessa mulher em especial: Clarice.
Não são muitos os homens que
não se sentem ameaçados... Mas lá estão esses poucos representantes do sexo
forte. Camuflados, escondidos e quietos entre mulheres inquietas. Elas querem
ser notadas, eles querem parecer invisíveis. Elas levantam e se servem de
vinho, café, biscoitos. Eles fingem não estar com sede e nem fome. Querem o
maior anonimato possível. O porquê não sei dizer.
O professor já me conquistou
em outros cursos. É de uma sensibilidade
e aparente delicadeza que impressionam. É sensível, suave, claro, tranquilo, escolhe
palavras e gestos que não nos deixam distrair.
Começa a fazer paralelos
entre Clarice, sua época, seus contemporâneos. Seus críticos. A dificuldade de
toda a crítica, de hoje e de sempre, de enquadrar a grande literatura de
Clarice na literatura chamada grande, dos grandes literatos.
O que me deixa feliz, pelas
minhas ambições, é quando quase concluímos que uma grande literatura pode ser
fruto de um cotidiano simples, focado através de lentes precisas, afiadas,
transparentes. Um pouco a vida como ela é...
Verdades. Realidades. Ironia.
Paixão. Atenção.
Um olhar sobre as coisas, do
jeito que as coisas são.
Quase como uma criança
genial, olhando.
Com pureza. Mas também com
dureza.
Uma verdade crua e indigesta
para tanta gente.
Clarice, mulher corajosa e
pouco ligada ao material. Que não se
deslumbrou com salões e cristais. Com viagens e brilhos. Gostava muito mais do
ser humano e dos momentos que parecem banais, mas são tesouros, de tantos
significados.
Clarice que ama os animais e
os respeita. Que imagina o que eles sentem, como se angustiam e quanto devemos
respeitá-los. Clarice que faz questão de
nos mostrar como a vida é feroz e brusca e negra.
Clarice que observa tudo com
seu caleidoscópio multi-multi-facetado.
Clarice que se amedronta com
baratas e lhes confere tanta importância. Clarice que descontrói o que estava
construído em nós.
Perguntas são respondidas com
competência e brilhantismo. Nosso professor é um apaixonado pelas letras,
palavras e Clarice.
Para finalizar a primeira
aula, a leitura de um texto conhecido, mas que se renova a cada leitura, como
toda e melhor arte. Pausadamente, claramente, as escolhidas palavras de
Clarice, são ditas pela voz agradável do professor e ficam ecoando nos nossos
corações, em nossas almas. Sim, os textos de Clarice mexem com nosso sangue,
não em nossas razões. Nos fazem ferver, nos fazem arrepiar, nos fazem tremer...
Estou sentada bem próxima a
ele. Consigo enxergar facilmente a lágrima que desce de seus olhos e pinga no
papel. Me emociono também.
Lá em cima, lá embaixo, onde
estiver, Clarice está em estado de graça. Continua nos fazendo enxergar.
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