segunda-feira, 13 de agosto de 2012


DESPEDIDA



Você estava deitada na cama do quarto do hospital havia quase um mês.

Não era verdadeiramente deitada, ou uma escolha sua.

Você tinha chegado lá porque uma ambulância te levara.

Você estava deitada porque não conseguia ficar em pé.

Você estava doente de uma doença que não escolhera, mas que te escolhera.

Havia quase meio mês que você estava desacordada, em coma induzido.

Estive lá, ao seu lado, esse tempo todo.

Mas o tempo foi pouco para o que eu precisava estar.

Pouco para me acostumar a te perder.

Pouco tempo, ou quase nada, para abraços, para dizer mais vezes o quanto te amava, que te compreendia, para te pedir desculpas por quando pensei que não te compreendesse. Desculpas por ter te feito chorar, por ter te deixado triste, por não ter te feito rir mais vezes.

Por ter te preocupado muito, por ter tirado seu sono em muitas noites compridas.

Pouco tempo para despedir de alguém que nunca quis que partisse.

Afinal, desde o meu primeiro choro, você estava lá comigo. Eu estava com você, desde o primeiro ar que respirei.

Antes disso até, quando ainda não era eu, mas sim uma extensão sua.

Quando você me alimentava, me ajudava a respirar, me fazia crescer, me fazia pessoa.

Trabalhando minuciosamente, artisticamente, divinamente para me colocar pronta no mundo, quando chegasse a hora.

Pronta para quase tudo. Menos para viver sem você.

A transformação que passamos você e eu naqueles dias não dá para ser descrita.

Não é experiência que possa ser repetida, antecipada, compartilhada.

Foi sua e minha. Nossa.

Cada olhar, cada lágrima, cada segundo de dor, cada segundo de amor, cada segundo de pavor.

O seu olhar amedrontado, seu pedido mudo de descanso, seus dedos frios, finos e sem cor entre as minhas mãos trêmulas.

Vivência sua e minha. Só nossa.

A intimidade que era nossa, quando eu ainda estava em seu ventre, quando ainda era um pedaço seu, voltou nos nossos últimos dias.

Eu te banhava, te alimentava, te ajudava com todas as necessidades.

Eu nem percebia que éramos duas.

Você não tinha apetite, eu também não. Você sentia dor, eu também sentia a sua dor.

Sua fraqueza era minha também.

A insegurança e o medo eram nossos.

A imagem da morte assombrava nós duas.

Eu enxugava as lágrimas que caiam dos seus olhos, no meu próprio rosto.

E o resto da esperança que tentávamos cultivar, de vez em quando, se tornava palavras em sua boca ou na minha, que eram rapidamente engolidas pelo nosso vômito, pelo nosso enjoo.

De vez em quando adormecíamos juntas, no torpor da morfina, na exaustão da fé.

Rezamos juntas, em uma só voz.

Agradecemos juntas.

Sorrimos um sorriso fraco, sem cor e sem dentes, sem som, para alguns amigos que vieram nos visitar.

Enganamos com maestria aqueles que sofriam mais por nós do que nós, para poupá-los.

Deixamos os médicos acreditarem que confiávamos neles. Que acreditávamos em sua competência contra o destino, em sua batalha contra o inexorável.

Cúmplices, nós duas, mãe e filha.

Quando a hora chegou, seu coração fraquinho tornou-se gigante, preenchido completamente por todo o amor que você sentiu em vida.

Amor por todos, pela beleza da vida, amor que você não economizou, e sempre ensinou.

Amor ao próximo, amor na sua mais pura forma.

Amor ingênuo. Amor de graça.

Na cama, seu corpo desapareceu. Sua roupa, seu cheiro, seu soro, sua doença, seu travesseiro, seu lençol, seu óculos...

Um enorme coração pulsante, brilhante, sadio, tomou conta do quarto.

Sua alma, mamãe, era um coração.

Um coração que continua a bater, com sangue a circular e que me impulsiona toda vez que a vida tenta me machucar.

Um coração que me acompanha, que se emociona comigo, que dispara com minha alegria, que bate sem tempo, sem limite, sem dor, sem medo, sem fim...

Em mim.


Um comentário:

  1. Sil, sempre me emociono com as coisas que você escreve! Muito bacana! Vou tentar fazer um link do seu Blog nos meus. Bjs

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