quinta-feira, 14 de junho de 2012

Nao me agradam os nomes que dão à sua condição: demência senil, Alzheimer, esclerose... Acho que são nomes fortes, frios, duros e nada simpáticos. E a simpatia é uma das principais características de meu pai.  Para mim, ele está só esquecidinho. A memória do meu paizinho, que tem 85 anos, não está assim tão afiada, é verdade!   Meu pai não consegue mais fixar o que acontece em seus dias, suas semanas, seus meses, seus anos. Nesses últimos cinco anos, o que viveu, passou. Nada ficou registrado, parece que nada teve importância. Mas não é bem assim. Ele, na sua sabedoria, guarda o que vale a pena guardar bem escondidinho... Papai vive agora dependendo dos outros. Ele precisa estar sempre com alguém para funcionar  "Está na hora de acordar, já é hora de ir dormir, vamos tomar banho, venha almoçar, pare de se coçar." E ele, pelo seu lado, parecendo um disco de vinil arranhado, não se cansa de repetir as mesmas perguntas ( de um cardápio do dia):  "Já almocei hoje? Com quem almocei? O que comi, se já almocei. Onde está minha carteira, de quem é essa chave, esse relógio é meu?" Meu pai foi e continua sendo uma pessoal especial. Tem carisma, humor, inteligência, alegria, prazer em viver. Gosta muito de viver! Ama viver! É agradecido a vida e sempre nos ensinou que a vida é presente.   Até quando começou a esquecer, quando começou a ficar esquecidinho, teve bom humor para rir de si próprio e fazer piadas com alegria e rapidez com a sua condição. Somos três filhos, noras, genros, netas e netos, agregados, sempre orbitando à sua volta. Sempre tentando segurá-lo na realidade por um fiozinho que teima em escapar pelos nossos dedos... Dormi essa noite na casa de meu pai porque ele tinha passado mal durante o dia e teve que ir para o hospital, onde fez vários exames, o que nos deixou assustados e amedrontados pelo aviso desse fantasma que insiste em nos rondar. Meu pai tem acompanhantes que moram com ele, mas resolvi dar uma força extra, ficando por lá, caso tivéssemos outras surpresas desagradáveis.  Estaria com o carro na garagem, estaria alerta... E foi então, nessa noite, que pude comprovar a existência dos anjos da guarda.  Pude ter certeza que minha mãe, que já nos deixou, olha por ele.  Que em algum lugar especial, não muito longe, meu pai tem um grande número de fãs, que torcem por ele e o acompanham sempre. Quantas vezes durante essa noite ouvi o arrastar de seus chinelos azuis pela casa? Agora entendi porque, durante o dia, eles descansam ao lado da cama, em frente ao criado mudo, exaustos. Foram tantas vezes, que nem eu lembro. Quantas vezes ele foi até a cozinha para tomar seu guaraná, comer suas bolachas? Quantas vezes foi ao banheiro, escovou os dentes? Veio ao meu quarto, foi ao quarto da acompanhante para ter cerrteza de que ela estava lá? Foi até a sala procurar seus passarinhos e quantas vezes o vi dar corda em seu relógio automático, concentradíssimo? Meu pai, na escuridão da noite, no escuro de sua memória, perseguido tão de perto pelas sombras, tinha passos decididos, passos jovens. Meu pai era outro na noite. Para mim pareceu que ele cumpria os compromissos de uma agenda. Compromissos que tinha agendado com ele mesmo. Corajosamente e independente ele enfrentava um monte de afazeres. No meio da noite meu pai era de novo, dono de si, destemido. No meio da noite, os olhos do meu pai tinham luz e vida.  Conhecia como ninguém a ordem de seu caos. Na solidão da noite fria, meu pai era senhor de si mesmo,  de suas vontades, de sua história. Mais uma vez meu pai e suas surpresas!

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